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Descendentes e Psicanálise: Uma Análise dos Conflitos Familiares e Identidade no Universo da Disney (CONTEM SPOILERS)

O filme Descendentes (2015), uma produção da Disney, mergulha no universo dos filhos dos vilões mais icônicos da história dos contos de fadas. Ambientado em uma sociedade que divide os herdeiros dos heróis e vilões, o filme explora questões de identidade, herança, moralidade e escolha. A psicanálise, como campo que busca compreender o inconsciente, os conflitos internos e as dinâmicas familiares, oferece uma lente rica para analisar a trama, especialmente no que tange às relações entre pais e filhos, o processo de individuação e a construção do self.

O Contexto Psicanalítico

A psicanálise, desenvolvida por Sigmund Freud, baseia-se em conceitos como o inconsciente, os mecanismos de defesa e a influência das primeiras experiências da infância sobre a formação do caráter e identidade do sujeito. A teoria psicanalítica também destaca a importância das relações familiares, especialmente a dinâmica com os pais, no processo de desenvolvimento psicológico. Em Descendentes, essas dinâmicas familiares são fundamentais, pois os personagens principais — Mal, Carlos, Evie e Jay — são filhos de vilões famosos, como Malévola, Cruella de Vil, a Rainha Má e Jafar. A trama foca nos conflitos internos desses jovens, que são forçados a confrontar o legado de suas famílias e a moldar suas próprias identidades.

Os Conflitos Familiares e o Legado dos Pais

Mal, a filha de Malévola, é uma personagem central que exemplifica a luta entre herança e escolha. Desde o início, ela se vê dividida entre o desejo de seguir os passos de sua mãe, sendo uma vilã, e a vontade de criar sua própria identidade. Essa dualidade remete ao conceito de conflito edípico de Freud, onde o indivíduo lida com a tensão entre a identificação com os pais e a necessidade de individuação. Mal deseja se afastar da sombra de Malévola, mas ao mesmo tempo, sente uma forte conexão com o legado de sua mãe, representado pela pressão para ser maligna. A relação de Mal com sua mãe é marcada pela idealização e, ao mesmo tempo, pela necessidade de se libertar. A personagem luta para ser reconhecida por sua própria personalidade, mas ao mesmo tempo, o vínculo com a mãe vilã a impede de seguir completamente seu caminho. Em termos psicanalíticos, isso pode ser interpretado como um processo de neurose familiar, onde a pessoa não consegue superar a identidade parental imposta, resultando em conflitos internos e dificuldades na construção da própria identidade.

O Processo de Individuação

A individuação, um conceito central na psicologia analítica de Carl Jung, refere-se ao processo pelo qual um indivíduo se torna o "eu" autêntico, separando-se das influências externas, incluindo a família. Em Descendentes, esse processo é ilustrado pelos personagens principais, que, ao longo da história, buscam encontrar suas próprias identidades, desconstruindo os estereótipos e legados impostos pelas famílias. Carlos, por exemplo, filho de Cruella de Vil, inicialmente demonstra uma grande insegurança e medo de seguir os passos de sua mãe. A sua transformação ao longo do filme reflete um movimento psíquico de enfrentamento do inconsciente, ao confrontar as expectativas e os traumas de sua mãe. Esse movimento é um exemplo do processo de individuação, onde o indivíduo começa a se distanciar do "pai" simbólico, representado pela figura da mãe vilã, para construir um novo caminho. Outro aspecto importante que a psicanálise pode trazer à tona é a relação com a moralidade e a escolha. No mundo de Descendentes, os personagens enfrentam uma tensão constante entre o bem e o mal. Embora todos sejam filhos de vilões, a questão central é se eles seguirão o caminho de seus pais ou optarão por um caminho diferente. Em termos psicanalíticos, essa luta pode ser vista como a interação entre o superego, que representa a moralidade internalizada dos pais e da sociedade, e o id, que lida com os desejos inconscientes e instintivos. A escolha de cada personagem em seguir ou não os passos de seus pais reflete essa luta interna. Mal, em particular, tem que confrontar seu próprio superego (a expectativa de seguir os passos de Malévola) e decidir se quer ser uma vilã ou se pode viver uma vida diferente.

A Reconciliação e a Formação de uma Nova Identidade

Ao final do filme, os personagens conseguem, de alguma forma, reconciliar seu legado com suas escolhas pessoais. Essa reconciliação simboliza o que Freud chamaria de compromisso entre os desejos inconscientes e as normas sociais, permitindo a construção de uma identidade mais equilibrada. Em um nível mais profundo, o final do filme oferece uma mensagem de esperança: é possível romper com os padrões familiares disfuncionais e criar novas formas de ser.

Descendentes oferece uma narrativa rica para a análise psicanalítica, especialmente no que diz respeito às dinâmicas familiares, à construção da identidade e ao processo de individuação. Os personagens, ao lidarem com a sombra de seus pais, ilustram como os conflitos internos e os legados familiares moldam, mas não determinam, o futuro de um indivíduo. A história também reforça a ideia de que é possível superar as expectativas impostas, reconfigurar a moralidade e escolher um caminho próprio, elementos que são fundamentais tanto para a psicanálise quanto para o desenvolvimento pessoal. Assim, Descendentes pode ser visto não apenas como um entretenimento juvenil, mas como uma representação simbólica das lutas psicológicas universais que todos enfrentam ao formar sua identidade e lidar com as expectativas familiares e sociais.

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